Água escorria da bica e ela passava o pano ensaboado nos talheres. Da janela via-se o muro amarelo [...] Esfregando os dentes do garfo, Lucrécia era uma roda pequena girando rápida enquanto a maior girava lenta — a roda lenta da claridade, e dentro desta uma moça trabalhando como formiga. Ser formiga na luz absorvia-a inteiramente e em pouco, como um verdadeiro trabalhador, ela não sabia mais quem lavava e o que era lavado — tão grande era a sua eficiência. Parecia enfim ter ultrapassado as mil possibilidades que uma pessoa tem, e estar apenas neste próprio dia, com tal simplicidade que as coisas eram vistas imediatamente. A pia. As panelas. A janela aberta. A ordem, e a tranqüila, isolada posição de cada coisa sob o seu olhar: nada se esquivava.
Quando procurava outro pedaço de sabão, não lhe ocorreria não achá-lo: lá estava ele, à mão. Tudo estava à mão.
O que era tão importante para uma pessoa de algum modo estúpida; Lucrécia que não possuía as futilidades da imaginação mas apenas a estreita existência do que via. Ah! gritava um pássaro no quintal da loja.
Sem pintura o rosto perdia os vícios de que em outros momentos Lucrécia Neves precisava para se dar certo peso neste mundo. Com o rosto nu, também ela avançaria se chamassem as criancinhas. Toda iluminada, toda medida pelas duas horas. Ah! cortava o pássaro no quintal. No fundo mesmo, ela se julgava uma deusa.
Sem pintura o rosto perdia os vícios de que em outros momentos Lucrécia Neves precisava para se dar certo peso neste mundo. Com o rosto nu, também ela avançaria se chamassem as criancinhas. Toda iluminada, toda medida pelas duas horas. Ah! cortava o pássaro no quintal. No fundo mesmo, ela se julgava uma deusa.
Foi talvez para exprimir sua divindade que a moça parou cansada, enxugando o suor da testa com o braço que segurava o prato.
Passeando o olhar pelo vasto subúrbio ensolarado. Lá estavam as coisas recortadas, e sem sombras, feitas para uma pessoa se aprumar ao olhá-las. Com o prato na mão, seu instrumento de trabalho, gostaria de exprimir talvez à mãe, por exemplo, como sua filha estava... estava...
Olhou um pouco intrigada aquelas coisas iluminadas, ao seu redor, forçando-se agora a exteriorizar, com um pensamento mesmo, o que sucedia fora dela.
Nada acontecia porém: uma criatura estava diante do que via, tomada pela qualidade do que via, com os olhos ofuscados pelo próprio modo calmo de olhar; a luz da cozinha era o seu modo de ver — as coisas às duas horas parecem feitas, mesmo na profundeza, do modo como se lhes vê a superfície. Bem desejaria contar algo dessa claridade a Ana ou a Perseu.
Mas, desamparada, forte, estava de pé. Remoendo sua dificuldade de raciocinar.
Naquela deusa consagrada pelas duas horas, o pensamento, quase nunca utilizado, primarizara-se até transformar-se num sentido apenas. Seu pensamento mais apurado era ver, passear, ouvir. Mas seu tosco espírito, como uma grande ave, se acompanhava sem se pedir explicações.
E quanto a contar a Perseu o que sucedia — tudo era simples demais, até mesmo estúpido: ela estava apenas construindo o que existe. O quê! ela estava vendo a realidade.
Além disso como contar a Perseu ou mesmo conseguir pensar, se tudo aquilo era feito de coisas das quais se se quisesse pedir a prova... Para mantê-las, era preciso apenas acreditar e mesmo não se dirigir a elas — toda a cozinha era uma visão de lado. Cada vez que se voltasse para o lado, a visão estaria de novo de lado. Era assim que a moça sustentava a iluminação das duas horas — erguendo agora a cabeça a um ruído, e agora correndo através da casa até a varanda, chamada pelo barulho de muitos passos na rua.
E EU QUERIA TER SETENTA E TRÊS, CAMILINHA, APARTES, COM ESTE TEXTO EM MÃOS, DA LISPECTOR, MAS SERIA CONTRADITÓRIO, NA MINHA PRETENSA CONDIÇÃO DE QUEM COMPREENDE O ESCRITO. PORQUE CELEBRA-SE, A TODO INSTANTE, A SIMPLICIDADE DO QUE NÃO SE PRECISA, NÃO MAIS DO QUE ISTO, VER.
"A vida são golpes, costuras e pontes."
RispondiElimina... ver simples significa necessariamente ser simples - coisa que não sou, infelizmente. Ou deixei de ser quando ganhei pele.