domenica, settembre 16, 2007


OFICINA DE TEXTO, EM 2002. QUANDO A GENTE GANHAVA NOTA PARA ESCREVER. QUE SAUDADE...




RELÍQUIA

Quebrou a única taça que restava no canto iluminado da sala. Quisera manchar os tapetes, arranhar o assoalho, mas determinou que uma pilha de estilhaços de cristal a aborreceria de imediato. Imaginava-a descalça, sangrando os pés inconsolável. As preciosas taças encerradas no movelzinho antigo desde que a família se havia mudado. O tesouro de um par de anos. A ruína do casamento reluzindo na esquina da sala, ela bem sabia. O marido evoluía diabólico, ferindo-a com gosto. Escolhera a pequena relíquia para vingar todas as discussões interrompidas, ocasiões em que não lhe fora dado vencer. Como se estudasse quieto, enquanto ela cozinhava, o ponto exato a atingir. E então disparava, expectante. Uma outra vez não lhe correspondera um sorriso, em jantar na casa de colegas da firma. E ele decerto compreendera o quanto ela carecia de um sorriso que a envolvesse como uma cortina naquele desconforto imenso. Sempre assim. Acompanhava-o como boa esposa, a esposa do gerente. E ele não lhe agradecia sequer pela pontualidade. Pelo nó na gravata que ela lhe ajeitava com mãos de prestidigitador. Sequer baixava a guarda, essa era a verdade. Não lhe mostrava os dentes solidário. Quebrava-lhe as taças, em vez disso. Agora essa.
Já passava do tempo de oficializarem o fim da união, mesmo porque nunca haviam sido unidos de fato. Ele, quando universitário, transitando entre os vizinhos no alojamento sentira-se, sim, parte de um grupo. Àquela época. Casado com ela, não passava de uma fonte de renda. O outro prato na mesa, que ela servia com a sua mão ornada pela aliança. À própria mãe ele não pagava um vestido, mas como noivo tivera de vasculhar a cidade atrás de um par de alianças “não muito finas e, achando, por que não foscas”. Vestir o dedo de uma estranha sob os olhos dos parentes distantes, empoleirados em bancos de igreja. Quantas vezes na vida havia procurado um alfaiate? A cerimônia toda era um pretexto para ridicularizá-lo, como ridicularizam as crianças. (As tias sempre comentam os maus cortes das crianças com um entusiasmo estarrecedor.)
A própria convivência por trás das portas bem-lixadas que o sogro lhe deixara de regalo o feria embaraçosamente. Haviam, como o casal que lhes cabia ser, alugado uma rotina. Pouco sal nas refeições, noticiário no intervalo do almoço e economia nas contas de gás e luz. Visitavam os dois casais de velhos uma noite ao mês, já contabilizando o combustível. Uma única viagem e cumpriam as formalidades de filhos casados. Quantos minutos lhe bastassem (a ela) para discorrer sobre o constrangimento das entrevistas para emprego. Nessas ocasiões ele escutava a esposa placidamente, enquanto se imaginava, a si mesmo, encaixado numa roleta de ônibus qualquer, respirando miúdo no fim do expediente. Encolhido. Tão imenso, meu Deus, mas para quê? Para encontrá-la ao girar a maçaneta, de luzes acesas, rindo dos comerciais de televisão. Havia tanto que ela não saberia abarcar com os bracinhos descarnados de quem rastreia taças.
Pois agora sequer as taças lhe haviam deixado. Como se lhe houvessem tirado inclusive o papel do doce. Nos anos de tédio e discreta depressão, tudo o que ela havia conseguido colecionar estava pulverizado. Escorada no sofazinho ela suspirava. Pensava nas janelas intocadas. Por que não lhe quebrava as janelas, o demônio. Por que a desprezava até a luminosa hora de talhar-lhe da rotina a farpa de felicidade irreparável. Pensava nos erros que se cometem. Na casa da mãe, sempre tão fresquinha e nas unhas do marido. Ria, agora. Não se lembrava das unhas do marido. Criava um cavalo no apartamento, como dissera certa vez a uma amiga com quem já não tinha mais contato. Alimenta-se um animal, exibe-lhe as fuças às visitas, mas o orgulho (quando não o sossego) de possuí-lo não pode ser tomado por afeição. Ela não gostava do marido. Ela o tinha. Não o conhecia, tampouco pelas mãos. Não sabia interpretar-lhe um gesto, talvez por isso as tempestuosas discussões. Quem sabe ele não lhe suplicasse, com um franzir de testa, para que ela os poupasse, a ambos, de tantas observações. Se ela o soubesse... O que teriam evitado e por quanto tempo...


Ajeitou a franja do sofá, pusilânime. Atestava o próprio fracasso. Teria de vê-lo. Se preciso fosse, fitá-lo-ia sobre a travessa de arroz, interrompendo o jantar. Faria tudo como se deve,
escutando quaisquer desculpas. Se pudesse resgatar o casamento, melhor. Mas que não a acusassem de injustiça. Correu ao quarto, procurar uma mala que sabia ter. Queria manter aquilo tudo, agora ciente dos riscos do fim, mas parte dela se entusiasmava com uma possível separação. O marido abrira-lhe muito pouco uma janela, o suficiente, no entanto, para secar-lhe a garganta – assim enxergava o incidente das taças. Como uma fresta. Esperá-lo-ia com duas mudas de roupa bem-dobradas, resoluta e decente.


06/09/2001.






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CI SIAMO QUATTRO. E LEGGIAMO ASSOLUTAMENTE TUTTO. DOPO TRE O QUATTRO MESI. E CINQUE O SEI BICCHIERI. DI VELENO.