domenica, ottobre 26, 2008

DO CONCURSO DE CONTOS

Quisera esperá-lo na ante-sala, devidamente empertigada como uma primeira-dama. Nessas horas, nas quais ninguém a conhecia e ela ostentava a velha pulseira de pedras embrulhando o pulso magro, sentia-se plena. Podiam tomá-la por uma senhora dinheirosa, paciente e pouco atenta (que só os pobres exalam essa ansiedade submissa nos consultórios médicos). Abriu a bolsa vagarosa, entrecerrando os olhos na sua indiferença calculada. Resgatou um espelhinho circular e pôs-se a analisar os cílios. Perfeitos, como de costume. Coçou a orelha com o dorso da mão livre para que pudesse mirar a pulseira junto a eles. Também ela perfeita, cada pedra em seu lugar. Quem sabe se a beleza irretocável delas não estivesse justamente em não serem verdadeiras?). Sentia-se, enfim, nobre como a esposa de um bem-nascido, que o aguardava para um jantar requintado. Aquela era uma das raras ocasiões em que a ignorância não a condenava, porque aos presentes ela era anônima. Não poderiam julgá-la xucra enquanto permanecesse calada, franzindo os lábios diante do espelho. Pelo menos ali, onde o marido não lhe exigia cigarros ou um copo de cachaça, não poderiam menosprezá-la. Era, até onde se percebia, uma acompanhante de fino trato, mais ocupada com a maquiagem que com os exames do paciente. Assim eram os ricos, pensava, enxergavam o casamento com os olhos espremidos, sem se aterem às aflições do cônjuge. Para ser rica tinha de minimizar as emoções. Tinha de fumar e contemplar a suposta jóia, como quem se recorda de uma viagem ao estrangeiro. Como não pudesse dar-se ao luxo de gastar em cigarros para si, exercitava o ar displicente que a distanciava da miséria. Nas vizinhas e irmãos, nunca percebera qualquer serenidade em público. Eram afoitos e curiosos, como cães vadios. Aguçavam os ouvidos e aguardavam em pé nas salas de espera, cedendo os assentos aos importantes. Eram todos da mesma raça, compravam farinha e legumes no mesmo mercado, estendiam suas roupas no mesmo varal emprestado, mas ela se esforçava em disfarçar as origens. Enxergava com maior clareza, convencia-se. Sabia que o luxo era melhor que qualquer cervejada dominical, e que o respeito advindo do dinheiro superava aquele conseqüente da honestidade. A honestidade não lhes garantia uma geléia no pão. Mas agora era a primeira-dama. Tinha de sair mais cedo para ordenar aos empregados que fizessem as compras. Poliria a jóia no caminho e assegurar-se-ia das reservas no restaurante. Enquanto não lhe surgisse o marido suado nas mangas, bronco e aparvalhado, podia fitar os demais sem receios. Era finalmente importante. Se não lhe agradassem os sus olhares desdenhosos, que baixassem a cabeça. Dentro em pouco, no entanto, vinha ele, pisando tonto em função do sedativo. Haviam-lhe explorado o estômago. A camisa ordinária, amarfanhada, punha a perder o precioso instante de glória da mulher. Seu nome (o dela), proferido com aquela voz empastada, agravaria o vexame. Estava para ser descoberta. Mais um minuto e associá-la-iam àquela figura cambaleante. Imaginava-o recitando seus agradecimentos com a humildade mais ultrajante de quem recebe um favor. Podia mesmo sentir, em seguida, aquelas mãos espalmadas apertando-lhe o braço. Conduzi-lo-ia como a um jumento. Não se devia saudar uma primeira-dama daquela forma, tampouco reverenciar um médico por prestar-lhe serviços. Também ele tinha direitos, sobretudo porque ela se dignara a esperá-lo com toda a classe que seu trabalho lhe conferia , por quase uma hora. Cumpriram a parte deles, sabe-se Deus como –porque desconhecia a maneira como ele se havia portado além das paredes da sala. Ela, todavia, não poderia ter-se saído melhor. O embaraço viria com o arrepio que ela já se acostumara a sentir, na hora do pagamento. Trincava os dentes, desacreditada, e já lhe tingia o rosto a angústia de um general vencido. Lutara com sofreguidão, cuidando para que inclusive os espirros saíssem-lhe baixos, mas ele poria tudo a perder. As dúzias de células encardidas brotariam do bolso da mesma camisa enrugada, e assim denunciariam à secretária suas limitações imperdoáveis. Haviam, sim, poupado centavos e notas miúdas, suspendendo os almoços oferecidos ao padrinho da criança. Estariam entregues. Nutria agora ódio avassalador pela singeleza impudente do gesto que estava por ser praticado. As comportas da vaidade eram-lhe finalmente abertas e ela não conseguia conter os maus desejos. Repentinamente, queria visitar o estômago do marido, mas com facas. Queria feri-lo porque não acreditava que um dos colegas não lhe pudesse arranjar um dinheiro menos surrado em troca daquela pilha amarrotada. Ele não se esforçava em parecer melhor. Era mais um miserável conformado, com a cabeça povoada de cenários de bares, sorrindo da própria cruz como um cavalo contempla a carroça. Morreria sem limpar os cotovelos aspérrimos, sem cobiçar sequer um terno, ou sentar-se nas poltronas (cujo estofado ela apenas imaginava) de um avião. Tratava-se de um homem circunscrito na rotina do pai e do avô. Nascera no chão batido, e não tivera, até então, a capacidade de estender o pescoço através da janela e dar-se ao direito de desejar o que os pais não lhe haviam podido dar. Por fim ele a cercou com os olhos, ainda assustado com os sentidos que não lhe voltavam de todo. Murmurou alguma interjeição e voltou-se para agradecer ao médico com um aperto sofrido de mãos. Sentia-se desfalecer. Pôde ainda contemplar os dentes redondos da enfermeira que o observava serena, e julgou-a prestimosa. Depois caiu. A primeira-dama retomou seu posto, agora acrescentando à elegância uma pressa súbita. Como se escutasse um alarme que dispara, ergueu-se aborrecida. Dirigiu-se ao banheiro. Tornaria tão logo o retirassem da vista da clientela, convencidos de que um pobre-diabo daqueles viera desacompanhado. Ninguém poderia castigá-la, e se o tentassem, o entrecerrar de olhos amparado por duas breves negativas haveriam de inocentá-la. Sacudiu o pulso confortada. Quem sabe o motorista não a levaria para polir as jóias sem o prefeito?.. 26/09/2001.

1 commento:

CI SIAMO QUATTRO. E LEGGIAMO ASSOLUTAMENTE TUTTO. DOPO TRE O QUATTRO MESI. E CINQUE O SEI BICCHIERI. DI VELENO.